Obras literárias que encantam crianças com sua fantasia e simbolismo, ao mesmo tempo que convidam leitores mais velhos a explorar camadas profundas de reflexão são a minha paixão!
Os livros da Lygia Bojunga são todos exemplos dessa combinação. Ela é uma das mais importantes autoras da literatura infantil e juvenil brasileira. Ou, melhor, da literatura brasileira. Ponto. Afinal, se os livros dela agradam crianças, jovens e nem tão jovens, por que deveríamos fechar esse reconhecimento a apenas uma parte do seu público leitor? Aliás, taí um próximo post pra lista: "Por que as pessoas acham que escrever para crianças é menor ou mais fácil?". Um dia ele sai... Mas, voltando à Lygia, ela foi, sem dúvida, minha primeira autora preferida e, mesmo tendo ganhado vários colegas com o passar dos anos, nunca perdeu seu posto ali entre os mais-mais da minha seleção.
Por que ela é tão boa?
Porque, utilizando elementos do realismo fantástico e com linguagem simples e direta, ela facilita a identificação do leitor com os temas abordados em seus livros. A obra de Lygia Bojunga exemplifica o conceito de "livro para infâncias", ou seja, um livro universal, que fala o "eu criança" de leitores de todas as idades. Eles são cheios de camadas e abordam temas fraturantes desde muito antes das discussões atuais sobre o tema. Olha só o que ela publicou durante a ditadura:
Os Colegas (1972): Em seu livro de estreia, Lygia nos apresenta um grupo de animais abandonados, vivendo à margem da vida, mas que – uma vez reunidos pelo acaso – descobrem a amizade, a solidariedade e uma intensa alegria de viver.*
Angélica (1975): Será que dá para ser outro alguém quando você já não quer mais ser você? Dá pra mudar o que não parece estar certo? Ser feliz, mesmo sem uma parte? É esse tipo de perguntas que leva os personagens de Angélica a descobrir que a criatividade pode fazer deles seres mais felizes.*
A Bolsa Amarela (1976): A menina Raquel entra em conflito consigo mesma e com a família ao reprimir três grandes vontades: a de crescer, a de ser garoto e a de se tornar escritora. Passamos então a acompanhar sua jornada, que mistura episódios reais e fantásticos, em um romance povoado de amigos secretos e descobertas sobre si mesma e sobre o mundo.*
A Casa da Madrinha (1978): Ainda que transpareça o contexto de exploração do trabalho do menor, o que predomina na obra é o lirismo, a fantasia e a confiança na capacidade de encontrar soluções criativas que transformem a dura realidade.*
Corda Bamba (1979): O livro trabalha, com muito respeito e sensibilidade, o equilíbrio entre fantasia e realidade, explorando a superação de traumas e o autoconhecimento, criando diálogos entre o inconsciente e a realidade, e nos levando à compreensão de que podemos caminhar sozinhos e sermos bem sucedidos, mesmo diante de perdas.*
O Sofá Estampado (1980): A história é aparentemente singela: a paixão de um tatu por uma gata angorá. Mas o livro apresenta ações e diálogos que retratam uma divertida e consistente crítica social.*
Tchau (1984): Essa coletânea de contos sobre paixão, amizade, ciúme e necessidade de criar segue o estilo da autora, levando a reflexões profundas e misturando o realismo e o fantástico.*
Além dos muitos prêmios nacionais e internacionais que Lygia Bojunga recebeu, merece destaque ela ter sido a primeira autora fora do eixo Estados Unidos-Europa a receber o Prêmio Hans Christian Andersen, conhecido também como o "Nobel" da literatura infantil. Muito maravilhosa essa mulher, gente!
Por que ler ou reler A Bolsa Amarela ?
A narrativa nos apresenta a menina Raquel e suas vontades são reprimidas guardadas dentro de uma bolsa amarela junto de muitas outras coisas.
Na interação da protagonista com tudo o que a bolsa carrega, as crianças encontram identificação com os conflitos de Raquel, enquanto adultos enxergam as camadas mais profundas da história: a busca de Raquel por expressão, liberdade, autonomia e pertencimento, algo muito marcante do momento histórico em que a obra foi publicada, mas que segue absolutamente atual.
A bolsa assume o papel de mediadora simbólica que serve à externalização de emoções e desejos e, na infância é comum que as crianças tenham desejos que desafiem as expectativas impostas por uma sociedade que tenta moldá-las. Bom, na verdade, a sociedade não deixa de tentar nos moldar depois que crescemos e, até por isso mesmo é tão importante que aprendamos a nos conhecer desde cedo.
Um dos desejos de Raquel é ser menino, o que levanta questionamentos sobre a percepção das desigualdades de gênero em um mundo que oferece mais oportunidades e autonomia aos homens. Através desse desejo, Lygia Bojunga aproveita para questionar estereótipos e provocar reflexões sobre os papéis de gênero, a igualdade e o respeito.
Outro desejo da protagonista é o de se tornar escritora. Se considerarmos que escrever é uma das principais formas de se expressar, o simbolismo desse desejo fica ainda mais forte. Talvez esteja aí o meu grande vínculo com essa história: a necessidade ENORME de me expressar desde que me conheço por gente, de falar pelos cotovelos, de escrever, de ler, de ser lida... Além de escrever ser uma poderosa ferramenta para isso, ela também é, para mim, uma forma de organizar os pensamentos e chegar a novas percepções, como essa que acabei de colocar aqui e na qual eu nunca tinha pensado!
Mas o objetivo desse texto não é falar dos meus processos, então, vamos voltar ao livro. A forma como esses desejos e desafios são apresentados nos leva a ver o amadurecimento de Raquel bem ali na nossa frente. E é muito bonito como ela aprende que tudo aquilo faz parte de sua identidade e que é possível ir encaixando as peças para amadurecermos e continuarmos sendo quem faz sentido sermos. Para nós mesmos, claro.
Como diz Paulo Freire, é a partir da consciência que podemos nos libertar e, como a liberdade é um anseio universal, a narrativa incentiva os leitores a questionar, refletir e transformar sua realidade, indpendentemente do momento de vida e da maturidade do leitor:
Leitores iniciantes: A narrativa fantasiosa é envolvente e permite identificação com a protagonista. A história é divertida, estimula a imaginação e convida os pequenos leitores a explorar seus desejos e sonhos.
Leitores fluentes: A metáfora dos desejos reprimidos guardados em uma bolsa mágica convida à reflexão sobre as pressões enfrentadas durante o amadurecimento.
Leitores experientes: A bolsa passa a representar as vontades e emoções que muitas vezes deixamos esquecidas, provocando reflexões sobre identidade, liberdade e os desafios de ser fiel a si mesmo em diferentes fases da vida.
Ou seja...
A Bolsa Amarela é um convite para olharmos lá pra dentro de nós. Para nos conhecermos, nos reconhecermos, nos descobrirmos, refletirmos e nos divertirmos!
Mas vale ler todos os livros da Lygia Bojunga. Para mim, pelo menos, eles tiveram um papel fundamental, pois foi lendo livros como A Bolsa Amarela, Angélica, Tchau e Corda Bamba que eu lidei com a separação dos meus pais, com as esquisitices do crescimento, com decepções, sonhos, alegrias, que revisitei processos... Acho que foi assim também que eu virei uma questionadora de carteirinha (junto com muita terapia e educação construtivista, rs).
Se você nunca leu A Bolsa Amarela, leia. Se já leu, releia!
Como a históra de Raquel conversou com o seu "eu criança"? Deixe nos comentários!
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*sinopses adaptadas da página dos livros na Amazon.
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